
A história por trás de tudo- relato de experiência
A última entrevista que editei foi a de Jaenette. Talvez por algum sentimento recluso – que fiz questão de manter assim por um tempo – mas que, inevitavelmente, se manifesta no inconsciente. Jaenette tem uma história dura e rígida, que se transpassa em sua forma de se expressar.
Sempre acreditei que nós somos, em parte, produtos de nossas experiências na vida. Jaenette é dura e é rígida, mas não faz, de forma alguma, o papel da vítima nessa história toda. Ela se impõe nas primeiras três palavras que pronuncia e não tem medo de enfrentar, ainda que já tenha enfrentado muito. Jaenette me inspira das mais diversas formas, de formas que talvez eu não consiga explicar nem a mim mesma. Jaenette foi a minha primeira entrevistada.
Antes de tudo isso começar a se tornar uma verdade, uma extensão da minha existência, eu me imaginava nessas situações. Por muitas, inúmeras vezes, imaginei. Principalmente durante as aulas de deontologia, em que discutíamos o fato de um entrevistador chorar em uma entrevista. Aqui eu me defino como um reservatório inesgotável de lágrimas. Ele nunca vai esgotar. Choro vendo uma pessoa que nem conheço passando na rua. Choro vendo um comercial de TV. Choro com um abraço um pouco mais apertado. Mas a minha intenção aqui não é vitimizar mim mesma, e sim dizer que pra mim o choro nessas entrevistas era certo desde que a ideia de tudo isso nasceu em minha cabeça. E tão surpreendente quanto Jaenette, foi a força que eu tive nessa entrevista. Não chorei.
É claro que eu chorei em outras mil situações. Chorei pelo mundo em que vivo, chorei pela injustiça, chorei pela falta de sensibilidade das pessoas e a intolerância. Chorei por nuances do ser humano, enraizadíssimas – e me incluo. Somos egoístas, e temos posturas definidas pela situação. Não somos, estamos. Mas, não chorei em minhas entrevistas.
Acredite se quiser, faço um exercício diário de não julgar. Às vezes eu falho, é claro. Mas isso é tão inerente a nós que se torna uma das tarefas mais difíceis do meu dia a dia. O medo nos faz julgar, e muito. Por muitas vezes nesse trabalho me vi refém do medo, tive vergonha de mim mesma e das coisas que pensei. O medo também é outra tradução da palavra humano e por conta dele muitas vezes eu desviei, eu deixei de perguntar, eu deixei de ajudar. E passei a me questionar.
Encontrei Ibra em uma feira madrilenha que ia em todos os domingos. Ele leva um sorriso expressivo e forte no rosto. Sempre. Costumo descrevê-lo como a gentileza em pessoa. Ele me surpreendeu desde nossa primeira conversa, quando me abordou enquanto eu gravava o grupo musical do qual ele faz parte tocando na rua. Não era pra pedir dinheiro, só pra conversar.
A principio minha ideia era fazer um documentário somente sobre refugiados, mas é difícil conseguir com que as pessoas queiram falar, e isso é completamente compreensível. Tudo o que eu mais queria era tentar fazer com que meus entrevistados se sentissem minimamente à vontade. Conheci Ibra quando ainda perseguia a ideia dos refugiados, e ele não é um refugiado, mas por alguma peripécia do destino trocamos contatos. Quando resolvi expandir a ideia para imigração irregular, entrei em contato com ele. Nos encontramos e ele foi sempre muito solícito, inclusive foi o único entrevistado que veio até mim. A entrevista de Ibra foi extraordinariamente inesperada.
No momento da mudança de tema – de apenas refugiados, para imigrantes em situação de vulnerabilidade – eu já não tinha tanto tempo em Madrid. Em um só dia, fui a quatro ONG’s buscando ajuda. Uma delas foi Karibu, da qual já tinha ouvido falar no começo de minhas pesquisas. Karibu significa bem-vindo em língua swahili e a ONG se autodenomina como “Amigos del Pueblo Africano”. O lugar faz jus a sua definição. Não encontro as palavras para dizer o quanto faz jus. Em Karibu encontrei África. A determinação de África é sentida em sua voz grave, que ao mesmo tempo me passa calma e paz. Depois de esperar um pouco e falar com algumas pessoas que não quiseram me dar entrevista África se mostrou preocupada em me ajudar, apesar do receio que sentia por ela mesma. A entrevista foi breve, mas África disse palavras de incentivo e de profunda sensatez.
No início da minha estada em Madrid, um amigo me convidou pra a ir a show de Afrobeat. Eu pouco sabia do meu tema, mas fui porque sempre me interessei por essa cultura, como me interesso por muitas. Foi uma das melhores experiências musicais que já tive e me apaixonei pelo Afrobeat, que mesmo antes de conhecer já tinha tudo a ver comigo. Nesse show meu amigo conheceu Akin, o líder da banda. Peguei o contato de Akin e ele se interessou em me ajudar desde o começo da nossa conversa. Me convidou pra passar um dia com a banda, um dia de gravação. Todos os integrantes de Ogun me trataram muitíssimo bem, e eles têm uma energia maravilhosa de sentir. Akin é uma pessoa tranquila, arrisco dizer que a mais tranquila que já conheci. Ele carrega a paz como um amuleto e possui uma luz que é difícil de explicar. Ele foi extremamente amável comigo em todo o tempo que estive no estúdio e seu esforço pra me ajudar durante a entrevista foi visível. A entrevista de Akin me fez um bem danado.
Talvez todas essas pessoas tivessem motivos pra ter medo de mim, ou pra ter medo de me dar entrevista. Mesmo assim, todos eles de alguma forma se esforçaram para isso. É claro que o que eles fizeram não foi só por mim, foi também por todas as outras pessoas que passam pelo que eles passaram. Mas o importante é que foi pra mais de um, e isso é uma lição que resolvi levar pra vida.
Eu me considero uma pessoa empática e levo como uma das máximas da minha vida ajudar aos outros. Mas não é pra me autopromover que escrevo isso e sim pra dizer que preciso fazer mais, ou pelo menos tentar fazer mais, sempre. Todos precisamos fazer mais. A vida é uma eterna busca e acho que é assim mesmo que tem ser.
Não sei ao certo da onde tirei a força que acreditava não ter pra fazer esse trabalho. Não que fosse deixar de fazê-lo, mas talvez o fizesse de uma outra forma. No final das contas, acho que essa força veio de Jaenette. De Ibra, de África, de Akin. E até isso eles me emprestaram.